Cristianismo

O NOME DE DEUS - Carta às conferências episcopais

Com a Declaração Nostra Aetate, o Concílio Vaticano II inaugurou uma nova maneira de dialogar com o diferente que aos poucos vai se tornando uma realidade palpável na linguagem da Igreja. Cada vez mais fica evidente que o acolhimento do diferente passa pelo respeito e pela reverência à sua maneira de se expressar.

A carta que transcrevemos abaixo, assinada pelo cardeal Francis Arinze e pelo arcebispo Albert Malcom Rajith, respectivamente prefeito e secretário da congregação vaticana para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos no dia 11 de setembro de 2008, seguindo uma diretiva de Bento XVI, é um símbolo concreto dessa nova direção.

Ao pedir o cuidado para que não se pronuncie o Tetragrama, na tradução dos textos bíblicos e nas orações e cantos da liturgia estamos acolhendo com respeito e prestando reverencia ao modo como os irmãos e irmãs mais velhos na fé, ao longo dos séculos, preservaram o Nome impronunciável de Deus e traduziram o Tetragrama com os “apelidos” Senhor ou Adonai.

Certamente, o ecumenismo e o diálogo entre as religiões, ultrapassa o momento celebrativo, mas a mudança de linguagem implica em uma mudança de atitude, e mais ainda se tratando da linguagem que expressa a fé da Igreja, a liturgia.

Eminência / Excelência Reverendíssima,

Por disposição do Santo Padre e de acordo com a Congregação para a Doutrina da Fé, esta Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos achou por bem dar a conhecer às Conferências Episcopais a seguinte exposição sobre a tradução e pronúncia, no âmbito litúrgico, do divino Nome, significado no tetragrama sagrado, acompanhando-a de uma correspondente parte dispositiva.

I. Parte expositiva

1. As palavras da Sagrada escritura, contidas no Antigo e no Novo Testamento, exprimem verdades que superam os limites impostos pelo tempo e lugar. É o que acontece com a Palavra de Deus em palavras humanas e, através dessas palavras de vida, o Espírito Santo introduz os fieis no conhecimento da verdade total, fazendo com que a palavra de Cristo habite nos crentes com toda a sua riqueza (cf. Jo 14,26; 16,12-15). Para que a palavra de Deus, escrita nos sagrados textos, seja guardada e transmitida de forma integral e fiel, toda a tradução moderna dos livros bíblicos procura ser a transposição fiel e cuidadosa dos textos originais. Esse trabalho literário exige que se traduza o texto original com a máxima integridade e cuidado, sem recorrer a omissões ou acréscimos de conteúdo e sem introduzir glosas ou paráfrases explicativas que não pertençam ao texto sagrado.

Tratando-se do santo nome próprio de Deus, a fidelidade e o respeito da parte dos tradutores devem ser máximos. De modo especial, como diz o n. 41 da Instrução Liturgiam authenticam, “segundo uma imemorável tradição, já evidenciada na tradução dos ‘Setenta’, o nome de Deus onipotente, expresso em hebraico no tetragrama sagrado e traduzido em latim com a palavra Dominus, deve ser posto em todas as línguas vernáculas num vocábulo de significado equivalente”.

Não obstante a clareza desta disposição, nos anos recentes afirmou-se o costume de pronunciar o nome próprio do Deus de Israel, conhecido como tetragrama sagrado ou divino, por estar escrito com quatro letras consonânticas do alfabeto hebraico YHWH. O uso da sua vocalização encontra-se tanto na leitura dos textos bíblicos tirados dos Lecionários como em orações e cantos, e sob diversas formas de escrita e de pronúncia, como, por exemplo, Yahweh, Yahwé, Jahweh, Jahwé, Javé, Jeovah etc. Daí a nossa intenção de, com a presente Carta, expor alguns dados essenciais que justificam a norma supracitada e dar algumas disposições que deverão ser observadas.

2. A veneranda tradição bíblica das Sagradas escrituras, conhecidas como Antigo Testamento, confirma uma série de denominações divinas, entre as quais o santo nome de Deus, revelado no tetragrama YHWH. Sendo expressão da infinita grandeza e majestade de Deus, não se podia pronunciá-lo e, por isso, era substituído, na leitura do texto sagrado, com uma denominação alternativa Adonay, que significa Senhor.

A própria tradução grega do Antigo testamento, chamada dos Setenta, e que remonta aos últimos séculos anteriores à era cristã, usara regularmente o tetragrama hebraico com o vocábulo grego Kyrios, que significa Senhor. Uma vez que o texto dos Setenta constituiu a Bíblia das primeiras gerações cristãs de língua grega, em que foram também escritos todos os livros do Novo Testamento, os próprios cristãos das origens nunca pronunciaram o tetragrama divino. O mesmo aconteceu com os cristãos de língua latina, cuja literatura tem início nos finais do século II, como resulta, primeiro, da Vetus latina e, depois, da Vulgata de São Jerônimo: também nestas traduções o tetragrama é regularmente substituído pelo vocábulo latino Dominus, correspondente tanto ao hebraico Adonay como ao grego Kyrios. O mesmo vale para a recente Nova Vulgata, que a Igreja adota na liturgia.

O fato teve repercussões importantes na própria cristologia neo-testamentária. De fato, quando São Paulo escreve, acerca do Crucificado, que “Deus o exaltou e lhe deu um nome que está acima de todos os nomes” (Fl 2,9), não entende senão o nome de Senhor, pois continua dizendo: “... e toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor” (Fl 2,11; cf. Is 42,8: “Eu sou o Senhor: este é o meu nome”). A atribuição desta qualificação a Cristo ressuscitado corresponde, nem mais nem menos, à proclamação da sua divindade. O título, com efeito, torna-se permutável entre o Deus de Israel e o Messias da fé cristã, quando não pertencia absolutamente à titularidade do Messias israelita. Em sentido estritamente teológico, o título já se encontra, por exemplo, no primeiro Evangelho canônico (cf. Mt 1,20: “O anjo do Senhor apareceu em sonho a José”) e o encontramos regularmente nas citações veterotestamentárias (cf. At 2,20: “O sol converter-se-á em trevas... antes que chegue o grande dia do Senhor” [Jl 3,4[; 1Pd 1,25: “A palavra do Senhor permanece para sempre” [Is 40,8]). Já em sentido propriamente cristológico, para além do texto citado de Fl 2,9-11, pode citar-se Rm 10,9 (“se proclamares com a tua boca que Jesus é o Senhor e acreditares no coração que Deus o ressuscitou dos mortos, será salvo”), 1 Cor 2,8 (não teriam crucificado o Senhor da glória”), 1Cor 12,3 (“...ninguém é capaz de dizer ‘Jesus é Senhor’ a não ser pela ação do Espírito Santo”) e a fórmula que freqüentemente se aplica ao cristão enquanto vive “no Senhor” (Rm 16,2; 1Cor 7,22; 1Ts 3,8; etc.).

3. O fato de a Igreja ter deixado de pronunciar o tetragrama do nome de Deus tem a sua razão de ser. Para além de um motivo de ordem puramente filológico, também há o da fidelidade à tradição eclesial, uma vez que o tetragrama sagrado nunca foi pronunciado em âmbito cristão nem traduzido em nenhuma das línguas em que a Bíblia foi traduzida.

II. Parte dispositiva

À luz do acima exposto, manda-se observar o seguinte:

1. nas celebrações litúrgicas, nos cantos e nas orações, não se use nem se pronuncie o nome de Deus na forma do tetragrama YHWH.

2. Nas traduções do texto bíblico, para as línguas modernas, destinadas ao uso litúrgico da Igreja, siga-se o estabelecido no n. 41 da Instrução Liturgiam authenticam, ou seja, empregue-se para o tetragrama divino o equivalente Adonay / Kyrios: Senhor, Signore, Lord, Seigneur, Herr, Señor, etc.

3. Nas traduções, no âmbito litúrgico, de textos que tenham, um a seguir ao outro, o termo hebraico Adonay e o tetragrama YHWH, traduza-se Adonay com Senhor e use-se a forma Deus para o tetragrama YHWH, analogamente ao que se faz na tradução grega dos Setenta e na latina da Vulgata.

Da Sede da congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos sacramentos, 29 de Junho de 2008.

+ Francis Card Arinze, Prefeito
+ Albert Malcolm Ranjith, Arcebispo Secretário
(fonte: Revista de Liturgia)